7.13.2025

A bola fora da betano: UMA JOGADA SEM VAR NO BOM SENSO

Sol, praia, futevôlei e… preconceito? No novo comercial da Betano, a bola até rola — mas quem sempre cai são os mesmos: o ambulante, o homem negro, o homem gordo

Ao assistir pela primeira vez ao novo comercial da Betano, patrocinadora oficial da Copa do
Mundo de Clubes da FIFA, a impressão é aquela já conhecida: uma resenha praiana bem produzida. Jovens brancos jogando futevôlei, câmera ágil, luz perfeita, música ensolarada — a estética que a publicidade brasileira adora repetir. Mas basta parar por alguns segundos e ver com atenção: o chute acerta mais do que a bola. Atinge também o senso crítico de quem assiste.

A peça tem apenas 30 segundos. Mas, nesse meio minuto, o que se diz — mesmo sem uma única fala! — é muito. Quem brilha? Jovens, magros, brancos e sorridentes. A câmera os acompanha com reverência, em câmera lenta, exaltando cada movimento. Até que entram os coadjuvantes. Ou melhor: os alvos. O ambulante leva uma bolada e derruba seus produtos. Um senhor tropeça e cai com seu guarda-sol. Um homem negro enfia o rosto no sanduíche ao ser atingido. E, para fechar a sequência, o homem obeso vira a piada da vez ao receber a bolada na barriga. Nenhum desses personagens fala. Nenhum reage. Todos viram escada para o riso fácil.

Coincidência? Claro que não. Isso se chama roteiro. É escolha de direção. É recorte de
mundo. E mais: é o velho modelo publicitário que ainda acha graça em bater — visualmente — nos mesmos corpos de sempre.

QUEM É A BETANO?

A Betano é uma gigante do mercado de apostas esportivas online (as famosas bets), operada pela empresa grega Kaizen Gaming. Presente na Europa, América Latina e, agora, no Brasil, ela patrocina clubes como Fluminense e Atlético-MG e assumiu a vitrine global da FIFA com a Copa Mundial de Clubes.

Com tanto alcance, vem junto uma responsabilidade proporcional. Não se trata apenas de
vender uma imagem vibrante de verão — mas de entender quem está vendo, quem é retratado, e como essas pessoas são tratadas no vídeo.

O HUMOR “INCORRETO” AINDA ENGAJA?

Alguns vão dizer que é exagero. Que é “mimimi”. Que “todo mundo já levou uma bolada na
praia”. Mas aqui, a pergunta não é se alguém levou — e sim quem levou e como foi mostrado.

Quando o ambulante é alvo da bola e perde seus produtos, reforça-se o estereótipo do
trabalhador precarizado, tratado como piada. Quando o homem obeso é atingido na barriga e gera gargalhadas, o velho deboche gordofóbico aparece sem cerimônia. E quando tudo isso acontece sem reação ou contexto, a desigualdade é embalada como entretenimento.

Isso não é novidade. O humor de escárnio — aquele que transforma minorias em piada — já foi amplamente usado pela publicidade. Comerciais clássicos como os da Bombril, com o “homem mil e uma utilidades”, zombavam de mulheres e figuras “exóticas”. Ou o anúncio da Pepsi, com Supla e um sushiman caricato, que reforçava estereótipos racistas e xenofóbicos. Durante anos, isso rendeu prêmios em Cannes. Hoje, o jogo mudou. O público está mais atento. E cobrar coerência virou regra da partida.

REPRESENTATIVIDADE DE VERDADE É MAIS DO QUE PRESENÇA

Colocar corpos diversos na tela não é suficiente. Representatividade real exige respeito
narrativo. Exige mostrar essas pessoas com dignidade, protagonismo, complexidade. No comercial da Betano, há sim uma mulher jogando — e jogando bem. Mas ela é a exceção. A “boa de bola” que se destaca no meio do elenco. Os outros seguem como pano de fundo do constrangimento.

A câmera revela tudo. Ela aproxima os corpos brancos e os mostra com glamour. Já os
“alvos” são filmados de longe, em cortes rápidos, tropeçando, sujando-se, sendo ridicularizados. O preconceito aqui não é verbal. É visual. E é feroz.

O ALGORITMO ESPALHA. MAS QUEM FILTRA É A CONSCIÊNCIA

Não à toa, peças como essa viralizam. Têm ritmo ágil, humor visual simples, alto potencial
de compartilhamento. E com o investimento certo, ganham espaço na TV, nas redes, nos intervalos da Copa. Mas o que se espalha rápido nem sempre é o que deveria.

Piadas visuais com alvos previsíveis podem render milhões de visualizações — e, com elas,
lucros. Mas também podem trazer cancelamentos, protestos, ações judiciais e danos de imagem. O algoritmo distribui. Mas cabe à sociedade filtrar. E às marcas, aprender.

O QUE PODERIA – E DEVERIA – SER DIFERENTE?

Criar uma campanha de verão que associe esporte, praia e diversidade é mais do que
possível. É desejável. Mas isso exige abandonar os atalhos do preconceito e da zombaria. Humor pode ser leve sem ser raso. Pode ser popular sem humilhar.

O anunciante tem dinheiro, tem visibilidade, tem estrutura. O que falta é visão crítica. A
mesma criatividade que constrói um comercial vibrante pode — e deve — ser usada para incluir, e não para ridicularizar.

Porque isso não é censura. É evolução. Não se trata de acabar com o riso. É sobre mudar a
direção. De rir com, não de. De parar de transformar corpos em alvo e começar a colocá-los de verdade no jogo.

NO APITO FINAL…

A campanha da Betano — veiculada no maior palco esportivo do mundo — revela mais do que pretendia. Ela mostra o quanto ainda precisamos avançar para que a publicidade brasileira represente, com dignidade, todos os corpos que fazem este país.

Se a Betano quer realmente jogar no Brasil, precisa entender que aqui a partida é coletiva. E que o público já aprendeu a ler nas entrelinhas. Ou nos frames. Até mesmo em 30 segundos.

Por Rollo (ator profissional e ex-integrante do Conselho Estadual de Política Cultural do RJ na cadeira do Audiovisual. Atualmente integra o elenco do espetáculo teatral “O Bem Amado”, de Dias Gomes, ao lado de Diogo Vilela, com direção de Marcus Alvisi).

Fonte: https://iclnoticias.com.br/a-bola-fora-da-betano/

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