Sol,
praia, futevôlei e… preconceito? No novo comercial da Betano, a
bola até rola — mas quem sempre cai são os mesmos: o ambulante, o
homem negro, o homem gordo
Ao
assistir pela primeira vez ao novo comercial da Betano, patrocinadora
oficial da Copa
do
Mundo
de Clubes da FIFA, a impressão é aquela já conhecida: uma resenha
praiana bem produzida. Jovens brancos jogando futevôlei, câmera
ágil, luz perfeita, música ensolarada — a estética que a
publicidade brasileira adora repetir. Mas basta parar por alguns
segundos e ver com atenção: o chute acerta mais do que a bola.
Atinge também o senso crítico de quem assiste.
A peça tem apenas 30 segundos. Mas, nesse meio minuto, o que se diz — mesmo sem uma única fala! — é muito. Quem brilha? Jovens, magros, brancos e sorridentes. A câmera os acompanha com reverência, em câmera lenta, exaltando cada movimento. Até que entram os coadjuvantes. Ou melhor: os alvos. O ambulante leva uma bolada e derruba seus produtos. Um senhor tropeça e cai com seu guarda-sol. Um homem negro enfia o rosto no sanduíche ao ser atingido. E, para fechar a sequência, o homem obeso vira a piada da vez ao receber a bolada na barriga. Nenhum desses personagens fala. Nenhum reage. Todos viram escada para o riso fácil.
Coincidência?
Claro que não. Isso se chama roteiro. É escolha de direção. É
recorte de
mundo. E mais: é o velho modelo publicitário que
ainda acha graça em bater — visualmente — nos mesmos corpos de
sempre.
QUEM É A BETANO?
A Betano é uma gigante do mercado de apostas esportivas online (as famosas bets), operada pela empresa grega Kaizen Gaming. Presente na Europa, América Latina e, agora, no Brasil, ela patrocina clubes como Fluminense e Atlético-MG e assumiu a vitrine global da FIFA com a Copa Mundial de Clubes.
Com
tanto alcance, vem junto uma responsabilidade proporcional. Não se
trata apenas de
vender uma imagem vibrante de verão — mas de
entender quem está vendo, quem é retratado, e como essas pessoas
são tratadas no vídeo.
O HUMOR “INCORRETO” AINDA ENGAJA?
Alguns
vão dizer que é exagero. Que é “mimimi”. Que “todo mundo já
levou uma bolada na
praia”. Mas aqui, a pergunta não é se
alguém levou — e sim quem levou e como foi mostrado.
Quando
o ambulante é alvo da bola e perde seus produtos, reforça-se o
estereótipo do
trabalhador precarizado, tratado como piada.
Quando o homem obeso é atingido na barriga e gera gargalhadas, o
velho deboche gordofóbico aparece sem cerimônia. E quando tudo isso
acontece sem reação ou contexto, a desigualdade é embalada como
entretenimento.
Isso não é novidade. O humor de escárnio — aquele que transforma minorias em piada — já foi amplamente usado pela publicidade. Comerciais clássicos como os da Bombril, com o “homem mil e uma utilidades”, zombavam de mulheres e figuras “exóticas”. Ou o anúncio da Pepsi, com Supla e um sushiman caricato, que reforçava estereótipos racistas e xenofóbicos. Durante anos, isso rendeu prêmios em Cannes. Hoje, o jogo mudou. O público está mais atento. E cobrar coerência virou regra da partida.
REPRESENTATIVIDADE DE VERDADE É MAIS DO QUE PRESENÇA
Colocar
corpos diversos na tela não é suficiente. Representatividade real
exige respeito
narrativo. Exige mostrar essas pessoas com
dignidade, protagonismo, complexidade. No comercial da Betano, há
sim uma mulher jogando — e jogando bem. Mas ela é a exceção. A
“boa de bola” que se destaca no meio do elenco. Os outros seguem
como pano de fundo do constrangimento.
A
câmera revela tudo. Ela aproxima os corpos brancos e os mostra com
glamour. Já os
“alvos” são filmados de longe, em cortes
rápidos, tropeçando, sujando-se, sendo ridicularizados. O
preconceito aqui não é verbal. É visual. E é feroz.
O ALGORITMO ESPALHA. MAS QUEM FILTRA É A CONSCIÊNCIA
Não
à toa, peças como essa viralizam. Têm ritmo ágil, humor visual
simples, alto potencial
de compartilhamento. E com o
investimento certo, ganham espaço na TV, nas redes, nos intervalos
da Copa. Mas o que se espalha rápido nem sempre é o que deveria.
Piadas
visuais com alvos previsíveis podem render milhões de visualizações
— e, com elas,
lucros. Mas também podem trazer cancelamentos,
protestos, ações judiciais e danos de imagem. O algoritmo
distribui. Mas cabe à sociedade filtrar. E às marcas, aprender.
O QUE PODERIA – E DEVERIA – SER DIFERENTE?
Criar
uma campanha de verão que associe esporte, praia e diversidade é
mais do que
possível. É desejável. Mas isso exige abandonar
os atalhos do preconceito e da zombaria. Humor pode ser leve sem ser
raso. Pode ser popular sem humilhar.
O
anunciante tem dinheiro, tem visibilidade, tem estrutura. O que falta
é visão crítica. A
mesma criatividade que constrói um
comercial vibrante pode — e deve — ser usada para incluir, e não
para ridicularizar.
Porque
isso não é censura. É evolução. Não se trata de acabar com o
riso. É sobre mudar a
direção. De rir com, não de. De parar
de transformar corpos em alvo e começar a colocá-los de verdade no
jogo.
NO APITO FINAL…
A campanha da Betano — veiculada no maior palco esportivo do mundo — revela mais do que pretendia. Ela mostra o quanto ainda precisamos avançar para que a publicidade brasileira represente, com dignidade, todos os corpos que fazem este país.
Se a Betano quer realmente jogar no Brasil, precisa entender que aqui a partida é coletiva. E que o público já aprendeu a ler nas entrelinhas. Ou nos frames. Até mesmo em 30 segundos.
Por Rollo (ator profissional e ex-integrante do Conselho Estadual de Política Cultural do RJ na cadeira do Audiovisual. Atualmente integra o elenco do espetáculo teatral “O Bem Amado”, de Dias Gomes, ao lado de Diogo Vilela, com direção de Marcus Alvisi).
Fonte: https://iclnoticias.com.br/a-bola-fora-da-betano/
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